sábado, 6 de março de 2010

Farmácia pode vender tudo?

Farmácia pode vender tudo?

Resolução da Anvisa busca acabar com as ‘farmácias-mercearias’ e empresários recorrem à Justiça e ao Legislativo para barrar mudança

Bruno Dominguez

Farmácias são estabelecimentos de saúde ou de conveniência? A questão tem colocado em lados opostos os donos de farmácia e os dirigentes, pesquisadores e demais profissionais da área de saúde, sobretudo os que vêm participando, nos últimos anos, das conferências nacionais do setor — incluindo-se aí, as de vigilância sanitária e de medicamentos. O processo para regular o comércio de medicamentos e a prestação de serviços nas farmácias, iniciado há três anos, resultou na Resolução RDC nº 44/09, das Boas Práticas Farmacêuticas, da Anvisa, que entrou em vigor no dia 18 de fevereiro, sob os protestos dos empresários.
Associados à Abrafarma, Febrafar e ABCFarma, que somam 66 mil das cerca de 70 mil farmácias do país, não têm cum¬prido a resolução, respaldados por liminares — em sua maioria, concedidas em primeira ins¬tância. Em estados como Minas Gerais, Roraima e Ceará foram aprovadas leis que barram as mudanças. No Ceará, especificamente, passaram-se apenas seis dias entre a apresentação de projeto para anular a resolução da Anvisa, na Assembleia Legislativa, e a sanção do projeto pelo governador, Cid Gomes, em dezembro de 2009.
Adjunto do diretor-presidente da Anvisa, o farmacêutico Pedro Ivo Sebba Ramalho diz que há uma ofensiva do comércio varejista sobre a Justiça e as assembleias legislativas para protelar o cumprimento da RDC. “É uma afronta à legislação e à saúde pública, na medida em que atenta contra critérios sanitários definidos pelo Estado brasileiro”, critica. Em sua opinião, há um desvio de finalidade desses estabelecimentos, que veio se configurando nos anos 1980, com a vertiginosa expansão de farmácias pelo Brasil (Radis 29). Os empresários alegam que, para enfrentar a concorrência cada vez maior, apostaram na diversificação de produtos.
“Ao entrarmos em qualquer farmácia, temos a impressão de estar num mercadinho”, lamenta. A vigilância sanitária já encontrou carne, sorvete, refrigerante, biscoito e até bebida alcoólica e isqueiro nas prateleiras e gôndolas. “É mais fácil oferecerem itens sem relação com a saúde do que uma assistência farmacêutica qualificada”, diz ele. O presidente do Conselho Federal de Farmácia, Jaldo de Souza Santos, conta que em Belo Horizonte farmácia vende até trator. O problema, aponta, é que os medicamentos passam a ser vistos como qualquer outra mercadoria, ou seja, como se drogas pudessem ser consumidas livremente. “A automedicação tem impacto progressivo e ampliado na sociedade”.
A função social da farmácia é sanitária. A RDC 44 da Anvisa busca resgatar esse papel original: a oferta de produtos e a prestação de serviços diretamente relacionados com saúde e bem-estar. Instrução normativa da resolução restringe os artigos passíveis de venda nesses ambientes: medicamentos, plantas medicinais, cosméticos, produtos de higiene pessoal, mamadeiras, chupetas, bicos e protetores de mamilos, lixas, alicates, cortadores e palitos de unha, afastadores de cutícula, pentes, escovas, toucas para banho, brincos estéreis, essências florais, alimentos para dieta ou específicos para lactentes, crianças, gestantes e idosos, suplementos vitamínicos, chás, mel, própolis e geleia.
Uma segunda instrução normativa determina que mesmo os medicamentos isentos de prescrição mé¬dica não podem ficar ao alcance das mãos do consumidor: somente atrás do balcão. Assim, seria preciso pedir o produto ao farmacêutico, que orientaria quanto à administração correta e racional. “Hoje, a pessoa entra e pega o que quiser, apesar do potencial dos medicamentos de causarem mal à saúde”, reclama Pedro Ivo. “Nenhum é isento de risco”. A Organização Mundial da Saúde define medicamento como produto para recuperação ou manutenção da saúde que requer orientação de uso pelo farmacêutico. “Numa gôndola, é uma mercadoria, não um medica¬mento”, observa Jaldo.
A RDC ainda prevê regras para a venda pela internet ou por telefone. As farmácias devem existir fisicamente, estar abertas e ter farmacêutico de plantão para atendimento ao usuário. E traz o farmacêutico para a atenção primária, permitindo que afira temperatura corporal, pressão arterial e taxa de glicemia capilar, além de administrar medicamentos, prestar atenção domiciliar e colocar brincos.

Presidente da Abrafarma, cujas três mil farmácias associadas comercializam 40% dos medicamentos do país, Sérgio Mena Barreto opina que as instruções normativas são ilegais. As associações de empresários do setor se apoiam numa interpretação da Lei nº 9.782, que criou a Anvisa, entendendo que a agência deve se basear nas leis existentes. No entanto, o texto em questão aponta como funções da Anvisa “estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária”.
Na opinião de Sérgio Mena Barre¬to, cabe ao Congresso a definição de regras para a atuação das farmácias. “Essa discussão está no lugar errado”. Questionar a competência normativa da Anvisa não é exatamente uma novidade: indústria e comércio costumam recorrer à Justiça quando a agência publica resoluções que põem em risco seu lucro — como aconteceu na regulação da propaganda de medicamentos e de produtos para crianças (Radis 79).
A Anvisa se baseia na Lei nº 5.991/1973, que define farmácia como “estabelecimento de manipulação de fórmulas magistrais e oficinais, de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos”, e drogaria como “estabelecimento de dispensação [distribuição] e comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos em suas embalagens originais”. Entre os correlatos, cita “aparelhos e acessórios, produtos utilizados para fins diag¬nósticos e analíticos, odontológicos, veterinários, de higiene pessoal ou de ambiente, cosméticos e perfumes” e “produtos dietéticos”.
A RDC avança ao apresentar uma lista completa do que pode ser vendido. “Os empresários vêm burlando não só a RDC 44, mas uma lei de três décadas”, comenta Pedro Ivo. O presidente da Abrafarma argumenta que a venda em farmácias do que chama de “produtos de conveniência” é uma tendência mundial. Já o representante da Anvisa diz que o Brasil importa o pior do modelo farmacêutico norte-americano: a parte da frente, em que se oferece todo tipo de produto, e não a parte de trás, com farmacêutico controlando a compra de medicamentos.
Sérgio também cita como justificativa os problemas de infraestrutura de muitas cidades brasileiras: 15 mil dos 60 mil pontos bancários do país ficam em farmácias; no Pará e no Piauí, o Bolsa-Família é distribuído nesses estabelecimentos. Perguntado se considera a farmácia um ambiente de saúde ou de comércio, Sérgio responde: “De saúde, mas que segue a estrutura do direito comercial”.
Sobre a passagem dos medicamentos para trás do balcão, admite que a medida traria mais segurança ao consumidor, visto que este receberia orientação do farmacêutico, mas res¬salva que poderia aumentar a “empur¬roterapia” — tentativa de influenciar a escolha de determinada marca, a fim de obter vantagens financeiras.
O assunto será analisado pelo Supremo Tribunal Federal, onde já há uma ação de inconstitucionalidade para invalidar as liminares que autorizam as farmácias-mercearias a funcionarem. Enquanto isso, Pedro Ivo diz que a agência “não vai se furtar ao direito e ao dever de garantir a segurança sanitária da população”.

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